A Educação de Jovens e Adultos (EJA) é direito de qualquer pessoa que não concluiu a educação básica. No Brasil, esse número pode chegar à casa de 80 milhões de pessoas Site externo. Apesar da imensa demanda potencial, as notícias mais comuns sobre a modalidade têm sido os anúncios de fechamento ou remanejamento de turmas, o que mantém e agrava desigualdades educacionais e sociais.
No estado de São Paulo, onde quase 12 milhões de pessoas são elegíveis para a EJA, o cenário não é diferente. Em 2023, haviam 85.515 matrículas a menos na EJA presencial do que em 2020, segundo divulgado por nota técnica da Rede Escola Pública e Universidade (REPU).
Foi uma queda de 61.9% nas matrículas, além da redução de 35.3% das matrículas na EJA semipresencial. Em abril de 2024, uma matéria do G1 com dados do Censo Escolar Site externo também já havia apontado essa tendência no estado, indicando redução de 57% nas matrículas da EJA Ensino Médio entre 2019 e 2023 (135 mil para 56 mil matrículas).
Como comenta a professora sênior da Faculdade de Educação da USP, Maria Clara Di Pierro, o processo de redução de matrículas nas redes municipal e, mais acentuadamente, estadual “é um processo que resulta de uma combinação de diversos fatores, como a inadequação de políticas públicas, o modelo escolar muito pouco atrativo e com questões de qualidade, e a falta de horizontes para jovens e adultos das camadas populares permanecerem na escola”. É um cenário que foi agravado na pandemia, mas que já vinha antes dela.
A tendência de queda no número de matrículas da EJA é nacional, reconhecida pelo Ministério da Educação Site externo como o grande desafio da modalidade. Ela reflete o sucateamento e abandono de quase todas as políticas para a modalidade na última década Site externo e que fazem com que o país esteja muito longe do patamar desejado para 2024 Site externo segundo previa o Plano Nacional de Educação (PNE).
Como mostra o último balanço da Campanha Nacional pelo Direito à Educação Site externo, foram mais de um milhão de matrículas perdidas na última década. Apesar de iniciativas recentes, como o Pacto Nacional pela Superação do Analfabetismo e Qualificação da Educação de Jovens e Adultos, o cenário ainda deve demorar a ser revertido. E dadas as especificidades da EJA, para isso acontecer é preciso muita vontade política. Até lá, estudantes, movimentos e demais entidades e membros de comunidades escolares lutam para que o cenário não se agrave ainda mais.
Desafios da EJA
A Educação de Jovens e Adultos é historicamente subfinanciada. Por exemplo, até 2023 o repasse financeiro para cada matrícula de EJA via Fundeb era menor do que para um aluno do ensino fundamental regular. Isso em uma modalidade marcada por acolher estudantes trabalhadores e trabalhadoras, com suas necessidades e desafios próprios de acesso e permanência.
Maria Clara Di Pierro, professora sênior da FEUSP, destaca a necessidade das políticas públicas olharem para a EJA com lentes próprias e não com o mesmo olhar da escolarização obrigatória para crianças e adolescentes. Essa é uma grande demanda de quem está no chão da escola Site externo e sabe as condições de vulnerabilidade de grande parte de alunas e alunos da Educação de Jovens e Adultos.
“O vínculo dos estudantes da EJA com a escola é intermitente. Eles vão e voltam. São sim persistentes, mas têm dificuldade de conciliar os estudos com o trabalho e outros arranjos de vida e de construir um projeto a médio prazo. E isso é lido como evasão”, exemplifica a professora, reforçando que as respostas para um problema multideterminado precisam ser também múltiplas e intersetoriais.
A permanência na escola depende também de fatores como moradia, renda, transporte público e alimentação. Por isso, medidas como transferência de matrículas de EJA para outras unidades, um movimento que tem sido comum em São Paulo e no Brasil, pode ter impactos na permanência e aumentar o abandono escolar. Site externo Essas transferências ocorrem sob o nome de “nucleação”, que é quando várias turmas de EJA são transferidas e concentradas em uma única unidade.
“É possível dizer que é ‘racional’ nuclear se há, por exemplo, poucos alunos e funcionários à noite. Mas ao fazer isso a EJA deixa de ser ofertada em várias escolas para ser ofertada em apenas uma. Fora o ônus do deslocamento, a falta de vínculo com a comunidade e com o território. Em outras palavras, é uma política contraproducente”, resume a professora Maria Clara Di Pierro, da FEUSP.
O cenário paulista
O sucateamento da modalidade também é realidade o cenário do maior estado do país, onde os números mostram que houve, além de redução na oferta de EJA, redução na oferta do do ensino médio regular no período noturno. A nota técnica “Redução na oferta da Educação de Jovens e Adultos e do ensino noturno na Rede Estadual de São Paulo, 2020-2023”, da REPU, traz vários dados que dão conta do problema:
A EJA presencial perdeu 61,9% das matrículas entre 2020 e 2023, período no qual desapareceram 85.515 matrículas.
As turmas da EJA presencial também diminuíram: eram 1945 turmas a menos em 2023, e quase 90% dessas turmas que deixaram de existir eram ofertadas à noite.
O noturno concentrou 99% do total de matrículas perdidas de EJA no período.
A EJA semipresencial perdeu 35,3% das matrículas entre 2020 e 2023.
As matrículas do ensino noturno regular também tiveram queda de 8.7%.
As perdas de matrículas foram ainda mais acentuadas nas escolas que aderiram ao Programa Ensino Integral (PEI) a partir de 2020. No período, 312 dessas escolas interromperam o atendimento à EJA e 470 deixaram de ofertar vagas no período noturno, levando a uma redução de 90.184 matrículas no período noturno.
As escolas que aderiram ao PEI a partir de 2020 perderam 84,5% das matrículas da EJA e 50,9% das matrículas do ensino noturno.
A Secretaria de Educação (Seduc) do Estado informou, em nota para essa reportagem, que hoje no estado de São Paulo existem 2,9 mil turmas em 793 escolas que ofertam a EJA, atendendo cerca de 66,7 mil alunos e alunas, e que qualquer estudante elegível para esse nível de ensino pode se matricular a qualquer momento do ano em uma unidade de ensino, em postos do Poupatempo ou pela Secretaria Escolar Digital (SED). A Pasta não comentou sobre as variações no número de matrículas ao longo dos anos.
A nota da REPU, que usa dados fornecidos pela Seduc, reconhece que os anos de 2020 e 2021, os de maior impacto da pandemia de Covid-19, foram atípicos e tiveram maiores índices de desistência e abandono escolar, mas defende que isso não é suficiente para explicar a queda nas matrículas. Isso porque a perda geral das matrículas na rede de ensino no mesmo período foi de 6.2%, muito distante dos mais de 60% na EJA.
O fato da quase totalidade das matrículas e turmas perdidas estarem no período noturno sugere, para as e os pesquisadores, quais políticas educacionais impactam as vagas nesse período, caso do Programa Ensino Integral (PEI). Implementado em 2012, o PEI tem jornada de sete horas e as escolas que aderiram ao modelo representam 45,2% da rede estadual paulista. Em muitos municípios há uma única escola estadual disponível. O argumento de que as escolas PEI aprofundam desigualdades educacionais baseia-se no fato de que estudantes trabalhadores e trabalhadoras muitas vezes só podem frequentar a escola em um turno, e não em período integral. Portanto, acabam se afastando da escola.
A adesão de escolas ao modelo cívico-militar – uma das bandeiras do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) – também impacta a oferta da EJA. A pesquisa da geógrafa Rafaela Miyake mapeou o perfil das primeiras escolas a aderirem ao Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares Site externo (PECIM) observou que, em São Paulo e no resto do Brasil, muitas unidades fecharam turmas da EJA e do noturno ao aderirem o programa. Isso porque as escolas, para serem elegíveis, não poderiam ofertar essas modalidades.
Na avaliação da professora Maria Clara Di Pierro, especialista em Educação de Jovens e Adultos na FEUSP, há uma “contrapolítica” no estado de SP em relação à EJA, que resulta na diminuição das matrículas. A nível nacional, a professora critica a falta de sanções – por exemplo, financeiras – aos municípios e estados brasileiros que descumprem suas obrigações constitucionais de ofertar Educação de Jovens e Adultos, já que em muitos municípios essa modalidade não é oferecida.
Na nota enviada à reportagem, a Seduc informa que tem “investido na ampliação das oportunidades de ingresso para estudantes na Educação de Jovens e Adultos” e que a Secretaria “também realiza constantemente campanhas de busca ativa para incentivar o retorno de estudantes que interromperam os estudos, em qualquer série oferecida pela rede estadual, incluindo a modalidade de EJA. Caso haja demanda, novas turmas podem ser abertas”.
A professora da FEUSP, Maria Clara Di Pierro, pontua que as pesquisas na área mostram que a demanda tem nuances. Embora gestores sempre citem a baixa demanda como motivo para fechamento de turmas, ela lembra que é preciso mobilizar e construir essa demanda, com ações mais eficazes de divulgação e busca ativa. “É preciso ação sistemática e organizada do poder público para pensar promoção e a permanência, porque hoje não há políticas de permanência e nem um modelo que considere a intermitência do vínculo”, critica.
“Os dados mostram que há milhões de pessoas de demanda potencial, o que acontece é que essa demanda não está manifestada, não bate na porta da escola no momento do planejamento do ano letivo”, diz. A professora lembra que, dado o tamanho da demanda no estado de São Paulo, é possível [e desejável] investir em vários modelos da EJA que se adaptem aos diferentes públicos, inclusive o autoinstrucional. “O desafio é fazer uma oferta diversificada de modelos altamente flexíveis sem rebaixar a qualidade, sem ser majoritariamente à distância”, finalizou.
Comunidades escolares resistem
As comunidades escolares afetadas pelos fechamentos ou remanejamentos têm se manifestado contra esse movimento. É o caso do CIEJA Rose Mary Frasson Site externo, cuja comunidade tem se mobilizado em vários protestos nas últimas semanas, e também da escola estadual Dr. Décio Ferraz Alvim, que ganhou visibilidade após um protesto de estudantes em setembro ser interrompido pela entrada da Força Tática da Polícia Militar. O ocorrido foi divulgado por parlamentares como o deputado estadual Carlos Gianazzi Site externo (PSOL), e o protesto foi tema de audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo Site externo (Alesp) no mesmo mês. Na audiência, que também abordou fechamentos e supostas perseguições em outras unidades da rede estadual, vários estudantes e professores da EE Dr. Décio Ferraz Alvim narraram os acontecimentos da escola, acusando os gestores responsáveis de perseguição política em represália à movimentação comunitária pela permanência da EJA e do noturno.
A Secretaria de Educação do Estado informou, por nota, que não houve fechamento de turmas da EJA na unidade, que ela continua oferecendo o modelo e está com matrículas abertas. “Todos os estudantes têm vaga garantida na rede estadual, que ajusta o atendimento conforme a demanda”, diz o comunicado. A informação de que a EJA segue em vigor é confirmada por estudantes da unidade ouvidos para esta reportagem. O que explicam – e isso também é mencionado na audiência pública – que o que foi comunicado não era o fechamento imediato e sim que não seriam abertas novas turmas a partir de 2025 – portanto, a unidade não ofertaria mais EJA após a formatura dos atuais educandos e educandas. Além disso, profissionais relatam que o número de turmas na escola já vem diminuindo ao longo dos anos, apesar da demanda.
Segundo os e as estudantes – que são de turmas e modalidades diferentes – essa notícia foi dada à gestão da escola pela diretoria de ensino, e o então coordenador pedagógico visitou todas as salas para informar a situação. Isso mobilizou estudantes, que realizaram assembleia onde foi deliberada uma visita à Diretoria de Ensino responsável pela unidade. A caravana foi ouvida pela entidade – e após essa visita algumas vagas de EJA que tinham sido remanejadas para outra escola reabriram -, mas pouco tempo depois dois profissionais da escola foram afastados: a diretora e, logo em seguida, o coordenador pedagógico.
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